A oncologia vem experimentando uma revolução sem precedentes nos últimos anos, impulsionada por inovações tecnológicas que transformam a maneira como os médicos detectam e tratam os novos casos de câncer. O avanço nas técnicas de diagnóstico por imagem, o desenvolvimento de testes genéticos mais precisos e a identificação de biomarcadores específicos têm permitido não apenas a detecção precoce da doença, mas também aberto caminhos para tratamentos personalizados e com maiores chances de sucesso.
De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), o câncer é a segunda principal causa de morte no mundo, sendo responsável por cerca de 10 milhões de óbitos em 2020. No Brasil, o Instituto Nacional de Câncer (Inca) estima que, para cada ano do triênio 2023-2025, sejam identificados cerca de 704 mil novos casos da doença. Nesse cenário, as inovações diagnósticas surgem como uma esperança para mudar tais estatísticas.
Das especialidades médicas, a oncologia é uma das que, nas últimas décadas, mais têm alavancado o desenvolvimento e incorporação tecnológica na área da saúde Foto: Getty Images
“Das especialidades médicas, a oncologia é uma das que, nas últimas décadas, mais têm alavancado o desenvolvimento e incorporação tecnológica na área da saúde”, afirma Andréia Melo, líder da especialidade Tumores Ginecológicos da Oncoclínicas. Ela destaca que a medicina personalizada, baseada em biomarcadores e alterações moleculares, já é uma realidade bastante consolidada na prática clínica atual.
Genética: a nova fronteira da prevenção
Um dos principais avanços está na área da genética. “Os cânceres de mama, ovário e endométrio possuem componentes de síndromes hereditárias importantes como fatores de risco para seu desenvolvimento”, explica Diocésio Andrade, também oncologista da Oncoclínicas. Segundo o especialista, aproximadamente 10% dos cânceres de mama e 15% dos cânceres de ovário estão associados a mutações nos genes BRCA1/BRCA2 – uma descoberta que levou a mudanças significativas nos protocolos de diagnóstico.
Devido a essa síndrome, todas as pacientes com diagnóstico de câncer epitelial de ovário precisam ser avaliadas por um geneticista para que um teste genético germinativo seja realizado com o objetivo de detectar a presença de mutação naqueles genes. No caso do câncer de mama, existe uma regulamentação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) que garante a realização do exame em casos especiais, como mulheres diagnosticadas antes dos 35 anos ou com histórico familiar relevante.
O câncer de endométrio pode estar associado a uma condição genética conhecida como Síndrome de Lynch. Essa síndrome causa mutações em genes responsáveis pelo reparo do DNA quando ele é danificado, aumentando não apenas o risco de câncer de endométrio, mas também de intestino.
A identificação de mutações genéticas não serve apenas para o diagnóstico. “Cerca de 15% das neoplasias têm relação com alterações germinativas. Ou seja, algo que herdou do pai ou da mãe”, ressalta Andréia Melo. Por isso, a identificação dessas alterações é importante não apenas para o paciente, mas também para a sua família. Uma das indicações podem ser as chamadas cirurgias redutoras de risco, como a retirada de ambas as mamas e dos ovários e trompas de Falópio.
Tratamentos sob medida
“Hoje o oncologista busca por essas alterações nos tumores dos pacientes e a partir delas constrói um raciocínio clínico, entende o comportamento biológico, infere a respeito do prognóstico e faz a proposta terapêutica”, ressalta Andréia Melo.
Pacientes com mutações específicas podem se beneficiar de tratamentos direcionados, como os inibidores da PARP (enzima responsável pelo reparo ao dano de DNA). Ao bloquear essa enzima nas pessoas com mutação nos genes BRCA1/BRCA2, as células cancerígenas tendem a morrer, aumentando assim a chance de cura. Segundo Diocésio, uma das abordagens mais modernas no tratamento do câncer de endométrio é o advento da imunoterapia associada à quimioterapia.
Apesar dos avanços significativos, o acesso a essas tecnologias ainda é um desafio, especialmente no Sistema Único de Saúde (SUS). “A incorporação dos painéis germinativos e a instalação dos ambulatórios de oncogenética na oncologia do SUS ainda não são realidade para todos os serviços”, aponta Andréia Melo.
No entanto, há sinais positivos de mudança. Nos últimos meses, as discussões sobre a incorporação universal dessas tecnologias têm se intensificado. A redução dos custos dos painéis genéticos e iniciativas em alguns Estados brasileiros, que já contam com legislação específica para o tema, abrem caminho para uma possível ampliação do acesso. Segundo dados do Ministério da Saúde, existem atualmente cerca de 317 hospitais habilitados em oncologia no SUS, distribuídos por todo o País. A expansão do acesso às novas tecnologias nesses centros poderia beneficiar milhares de pacientes anualmente.
O futuro do diagnóstico oncológico
Enquanto as novas tecnologias avançam, os métodos tradicionais de rastreamento seguem fundamentais. De acordo com Diocésio Andrade, a realização de uma mamografia anual a partir dos 40 anos ainda é essencial para o diagnóstico de tumores de mama. “Infelizmente não há um exame de rastreio convencional para o câncer de ovário ou endométrio. Mas consultas anuais ao ginecologista e a realização de exames de imagem, como o ultrassom transvaginal, podem detectar tumores em seus estágios mais iniciais”, pontua o especialista.
Entretanto, as inovações no campo do diagnóstico oncológico estão avançando rapidamente. Pesquisas em desenvolvimento em centros oncológicos ao redor do mundo apontam para o aperfeiçoamento de técnicas cada vez mais precisas e menos invasivas, como a biópsia líquida e novos biomarcadores tumorais.
A combinação de diferentes tecnologias – imagem, genética e biomarcadores – está revolucionando o cenário oncológico, em que o diagnóstico precoce e o tratamento personalizado do câncer se tornam cada vez mais eficazes. O desafio urgente é democratizar tais avanços, garantindo que as inovações estejam disponíveis para todos os brasileiros, independentemente de sua condição socioeconômica.
Conheça as novas tecnologias:
Biomarcadores: os sinalizadores do corpo
São como “impressões digitais” presentes nas células ou no sangue que podem indicar a presença de um câncer ou sua evolução – algo como pequenas bandeiras vermelhas que o corpo levanta quando alguma coisa não está funcionando normalmente. Por exemplo: no câncer de mama, a presença de certas proteínas pode indicar não apenas a existência do tumor, mas também apontar qual o melhor tratamento a ser seguido.
Painéis germinativos: o mapa genético do paciente
São exames que analisam diversos genes simultaneamente, como se fizessem uma varredura do DNA em busca de alterações que podem aumentar o risco de desenvolvimento de câncer. É como ter um mapa detalhado que mostra as regiões do código genético onde podem existir “vulnerabilidades” herdadas dos pais. No caso do câncer de mama e ovário, alterações nos genes BRCA1 e BRCA2 podem indicar um risco aumentado de desenvolver a doença.
Biópsia líquida: o exame de sangue do futuro
É uma técnica inovadora que permite detectar células tumorais ou fragmentos de DNA do tumor circulantes no sangue. Diferentemente da biópsia tradicional, que requer a retirada de um pedaço do tumor, a biópsia líquida é menos invasiva – basta uma amostra de sangue. É como se o exame conseguisse encontrar “pegadas” do tumor circulando pela corrente sanguínea, permitindo seu monitoramento de forma mais simples e frequente.
Exames de imagem moleculares
São versões avançadas dos tradicionais exames de imagem, que conseguem detectar não apenas a forma e o tamanho dos tumores, mas também seu comportamento biológico. O PET-CT, por exemplo, utiliza uma substância radioativa que se concentra em células tumorais muito ativas, permitindo identificar até mesmo tumores muito pequenos ou metástases difíceis de visualizar em outros exames.
Sequenciamento de nova geração (NGS)
É uma tecnologia que permite analisar grandes quantidades de material genético rapidamente, identificando múltiplas alterações que podem estar relacionadas ao câncer. É como ter um supermicroscópio capaz de ler milhões de páginas do “livro” do DNA em poucos dias, permitindo um diagnóstico mais preciso e a escolha do tratamento mais adequado para cada caso.
Testes de expressão gênica
São exames que avaliam quais genes estão “ligados” ou “desligados” em um tumor, ajudando a prever seu comportamento e a resposta ao tratamento. No câncer de mama, por exemplo, esses testes podem indicar se uma paciente precisará ou não de quimioterapia após a cirurgia, evitando tratamentos desnecessários em alguns casos.