“Eu quero voltar a andar de skate.”
De pé em cima de um cadeirão reforçado, que por sinal tinha acabado de galgar com desenvoltura, Raul, de 4 anos, relata as coisas que mais gosta de fazer: descer de escorregador na piscina do clube, andar na bike-carro (com rodinhas), fazer parkour pelos móveis da casa, dar cambalhota no judô, andar de skate. Só não está explorando o último porque o professor de skate saiu da escolinha que ele costumava frequentar e os pais ainda não encontraram outro profissional para a função.
Pais de Raul, de 4 anos, dão liberdade para o filho brincar e correr certos riscos Foto: Ananda Rigo Nogueira/Arquivo pessoal
O médico Rafael Costa Lopes Ramos, pai de Raul, afirma que ele e a mulher, a também médica Ananda Rigo Nogueira, nunca forçaram as atividades do filho nem o ritmo delas: “Tem vezes em que, mesmo a gente estando do lado e mostrando que pode dar conta, ele prefere empurrar a bicicleta diante de uma descida, e a gente respeita”. O importante, diz ele, é a autonomia e a liberdade para o filho escolher o que quer fazer. “Eu quero que ele quebre o braço? Eu quero que ele se machuque? É óbvio que não. Mas sei que não vou poder evitar 100%. Acho que deixar correr certos riscos faz parte de ele aprender a se cuidar.”
Riscos sempre estiveram embutidos nas estripulias das crianças. “O risco é inerente a uma atividade básica do ser humano, que é brincar”, afirma a engenheira florestal Maria Isabel Amando de Barros, especialista em infâncias e natureza do Instituto Alana. “Claro que a gente não vai permitir uma criança pequena atravessar a rua sozinha nem deixá-la desacompanhada ao lado da piscina, mas é importante que teste alturas, que escale, que brinque de lutinha com outra criança, rolando no chão e percebendo até onde pode ir. Faz parte de aprender a negociar”, ilustra.
Ocorre que estamos em tempos de censura a esses riscos benéficos, como chamam os especialistas. “A criança não pode mais pular, escalar, subir em árvore. É não, não, não”, diz Maria Isabel, enfatizando como essa restrição é totalmente antievolutiva, se pensarmos no ser humano como um mamífero que se desenvolve ao ar livre, convivendo com outros seres humanos de forma independente. A preocupação com essa regressão e seus efeitos sobre o desenvolvimento físico, cognitivo e emocional tem crescido, especialmente com a progressão paralela da realidade virtual.
Brincar ao ar livre, como faz Raul, é essencial para o desenvolvimento saudável, afirmam especialistas Foto: Ananda Rigo Nogueira/Arquivo pessoal
O psicólogo americano Jonathan Haidt, professor na Universidade de Nova York, botou holofote nessa questão no livro A Geração Ansiosa, lançado no ano passado. Ele fala da “guinada bem-intencionada, porém desastrosa” em direção à superproteção no mundo real e a subproteção no mundo virtual. A infância baseada no brincar, segundo ele, entrou em declínio na década de 1980. Deu lugar à infância baseada no celular, numa hiperconectividade que alterou o desenvolvimento social e neurológico dos usuários infantojuvenis a ponto de fragmentar sua atenção e privá-los do sono e do contato com outras pessoas. A guinada para a ansiedade foi brutal.
Outro americano, o jornalista Richard Louv, também se debruçou sobre o assunto em A Última Criança na Natureza, publicado em mais de 20 países e traduzido para o português pelo Instituto Alana. Nesse best-seller, ele faz um balanço do impacto negativo da falta de natureza na vida das crianças e dos riscos benéficos que elas, infelizmente, estão deixando de correr.
Foi ele quem cunhou a expressão Transtorno do Déficit de Natureza (TDN), ao perceber como a natureza, para as gerações atuais, é mais uma abstração do que uma realidade física – e uma abstração mais para consumir do que para ser desfrutada em carne e osso. Louv conta a história de um pré-adolescente que lhe disse, certa vez, gostar mais de brincar em ambientes fechados porque, afinal, é onde ficam todas as tomadas elétricas.
Explorar a natureza e os riscos que ela abriga também é a proposta do brasileiro Fabio Raimo, instrutor há mais de 30 anos de atividades e educação ao ar livre. Quanto aos riscos benéficos, ele é bastante assertivo: “Todos os pais têm a obrigação de expor a criança ao risco responsável para que ela se instrumentalize nas horas em que tiver de lidar com o mundo”. Isso vai reverberar no futuro, diz ele, inclusive na iniciativa de levantar a mão para fazer uma pergunta durante a aula.
Um exemplo simples que dá sobre as ofertas da natureza é a criança saber diferenciar o que significa subir num pé de goiaba, que é robusto, ou num pau-formiga, de tronco oco. Talvez ela caia ao experimentar um ou outro, mas faz parte. “Muitos pais não querem o ferimento, o machucado, o desconforto, mas há outros riscos bem mais severos, como a depressão.”
Contato com animais
Para uma exposição ao ar livre ou indoor, vale avaliar a idade da criança, sua personalidade, a atividade em questão e a própria destreza dos pais com essa atividade. A criança pode ser mais audaciosa em algumas coisas, noutras nem tanto.
Lavínia, de 2 anos, não tem medo de se aproximar dos animais do sítio da família, em Valinhos (SP) Foto: Aline Pedroni Pereira/Arquivo pessoal
A odontopediatra Aline Pedroni Pereira, que mora em Valinhos, interior de São Paulo, não classifica a filha, Lavínia, de 2 anos, como aventureira diante do mar ou de um tronco de árvore com altura compatível com a dela. Mas a classifica como corajosa quando lida com os animais – talvez pelo contato, desde cedo, com as duas cachorras de casa e com os bichos que vivem no sítio da família. “Ela conversa com todos, faz carinho em bezerro, cabrito, galinha. Sei que há risco, fico atenta, mas tento não reprimir esse contato.”
Para a dentista, há outro motivo fisiológico, digamos assim, para expor a filha aos bichos. A interação com os animais e com a natureza – aí inclusos o barro, a grama, a chuva –, além do acesso à amamentação, favorecem a formação da microbiota intestinal, que tem papel crucial no desenvolvimento e funcionamento do sistema imunológico da criança.
Raul, o pai e a mãe moram em São Paulo e os três exploram, sempre que possível, a natureza que a metrópole lhes dá. Frequentam parques, praças, bosques. Se o pai não anda de skate com o filho ou se a mãe prefere que ele sempre nade a seu lado na piscina funda do clube com a boia, é porque não se sentem ágeis para ajudá-lo em algum momento de perigo real. Mas, antes mesmo de andar, Raul já descia de costas ou de bunda as escadas das casas dos avós, sempre ouvindo a expressão “com segurança” ao fundo. “Avaliação de risco é algo que a gente ensina à criança desde bebê”, lembra Maria Isabel.
Medo do mundo exterior
O que aflige um pouco o pai de Raul, no momento, é pensar na insegurança que o filho enfrentará no futuro, ao sair andando sozinho pelas ruas e ter de lidar com assaltos e outras violências do cotidiano.
Tal apreensão já existe na cabeça e no coração da advogada Mariana Pasianoti, que tem dois filhos, Rafael, de 13 anos, e Lucca, de 16. Eles vão à escola sozinhos, não sem antes ouvirem pela milésima vez que é para andar na rua com o celular na mochila, sair em bando, colocar o localizador no dispositivo e prestar atenção ao trânsito. “Quando crianças, eu deixava que explorassem o ambiente para terem confiança em si mesmos, algo que sinto que consegui passar”, diz.
A família mora em Jundiaí, a 68 quilômetros da capital, cujo aposto é Cidade das Crianças, em função de políticas públicas intersetoriais que a prefeitura se propôs a desenvolver há alguns anos. Alinhado com as prerrogativas da Declaração Universal dos Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU) e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o programa municipal é baseado em pilares como garantia de autonomia, direito à educação, saúde e cultura, ferramentas de desenvolvimento, direito de brincar em parques seguros e de aprender em escolas que respeitem e promovam a conexão com a natureza.
Mundo das Crianças, em Jundiaí (SP) Foto: DAE Jundiaí
Sua construção mais vistosa é o Mundo das Crianças, parque com 500 mil m² de extensão que, em 2024, recebeu 681.354 visitantes, resultando em uma média de 56 mil visitantes mensais, a maioria crianças na faixa de 10 anos de idade. As atrações mais populares são as fontes interativas, o Espaço das Águas e a Casa da Árvore, onde são promovidas atividades educacionais. Uma iniciativa mais pontual foram mudanças no entorno da Fábrica das Infâncias Japy, que tornaram o desenho da via de acesso mais seguro depois do envolvimento de crianças de três escolas da região.
Outras cidades que estão investindo em políticas e iniciativas de urbanismo tático, inclusive ativação do entorno escolar, são Alcinópolis, no Mato Grosso do Sul, e Sobral, no Ceará. Na primeira, calçadas de escolas vêm sendo reformadas com nivelamento de piso, instalação de bicicletários e bancos brincantes. Na segunda, um projeto feito a partir de escuta infantil, com o apoio de educadores, buscou sanar problemas de segurança no trânsito e mobilidade em torno do Centro de Educação Infantil, no bairro do Sumaré, além de tornar o espaço favorável às crianças em vários horários do dia.
Haidt entende que não há brincar livre sem acesso à mobilidade, independência e autonomia, e sugere que a saída às restrições venha mesmo de soluções coletivas. Já Louv lembra que, se o mundo virtual atrai as crianças para dentro de casa, o que as empurra para o fundo do quarto é o medo dos pais em relação ao mundo exterior. “Não estou dizendo que não haja risco lá fora, até mesmo na natureza”, disse ele em entrevista dada há 20 anos, quando do lançamento de A Última Criança na Natureza, mas que continua atual como nunca. “Mas é um pequeno risco. E as crianças precisam de um pequeno risco.”