Cólica, diarreia, coceiras, feridas na pele, tosse e nariz entupido. Todos estes são sintomas de alergia alimentar, uma condição em que proteínas específicas de alguns alimentos causam uma reação imunológica, que pode ser apenas uma vermelhidão ao redor da boca ou até mesmo um choque anafilático, que oferece risco de morte.
O número de pessoas com alergia alimentar tem aumentado em todo o mundo. De acordo com a pediatra Jackeline Motta Franco, do Departamento Científico de Alergia Alimentar da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai), a tendência também se observa no Brasil, ainda que não haja dados epidemiológicos que evidenciem a disparada de casos.
“Nós temos essa impressão clínica. Há aumento do número de casos atendidos em consultório, na ocorrência de anafilaxia nas emergências e nos registros de aquisições da adrenalina. Então, são dados indiretos que nos fazem acreditar que a alergia alimentar vem aumentando progressivamente”, explica. Segundo a pediatra, a observação clínica indica não só um aumento na frequência, como também na persistência e na gravidade dos casos.
Entre 2019 e 2022, a procura por consultas médicas ambulatoriais com alergistas e imunologistas cresceu 42,1% no Brasil, segundo levantamento do IESS (Instituto de Estudos de Saúde Suplementar), feito com base no Mapa Assistencial da Saúde Suplementar, um relatório anual divulgado pela ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar).
Pesquisadores investigam o motivo da crescente de casos específicos de alergia alimentar, mas muitos fatores podem estar envolvidos, desde o tipo de parto e período de amamentação até o aumento de consumo de ultraprocessados.
Os alimentos que mais causam alergia
Devido às diferenças geográficas e culturais, essa lista pode mudar de país para país. No geral, entre os brasileiros, os alimentos mais alergênicos são o leite de vaca, o ovo, as oleaginosas (como castanhas e amendoim) e os frutos do mar. Já na Europa estão surgindo novos causadores entre as alergias recentes, como o gergelim.
Apesar de serem mais comuns em crianças, provavelmente por uma imaturidade do sistema imunológico, as alergias alimentares também aparecem em adultos – mesmo se ele já ingeriu o alimento em outro momento da vida e não apresentou reações. “Existe uma quebra do mecanismo de tolerância oral e, de repente, esse sistema imunológico começa a funcionar de uma outra forma”, ensina a alergista pediátrica Renata Cocco, do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.
Há casos em que a criança adquire tolerância à proteína e se cura ao longo do tempo, como é comum em alergias ao leite, por exemplo. Mas, em geral, a condição tende a permanecer pela vida, impondo algumas dificuldades no cotidiano do paciente e de seus familiares.
Desafios no diagnóstico
Pela semelhança dos sintomas, a alergia alimentar muitas vezes é confundida com a intolerância a algum alimento. Contudo, as condições são bastante diferentes: enquanto a alergia é uma resposta imunológica à alguma proteína, a intolerância é a deficiência de uma enzima que digere um carboidrato específico.
No caso do leite, por exemplo, os intolerantes à bebida produzem pouca (ou nenhuma) lactase, que é a enzima responsável por digerir a lactose. Dessa forma, quando a pessoa consome a bebida, esse carboidrato, também conhecido como açúcar do leite, fica no intestino e passa a fermentar, o que causa gases e distensão abdominal. Já nas alergias alimentares, o sistema imunológico reconhece erroneamente a proteína de um alimento como uma ameaça ao organismo e reage de forma exagerada.
Por isso, caso exista algum problema relacionado à ingestão de alimentos, a orientação de Renata é procurar um especialista para investigar a origem. “A investigação do médico é fundamental para entender se existe a indicação de alguns testes laboratoriais”, explica.
Nesse momento, o histórico das reações do paciente é essencial. Apenas mediante a suspeita de alergia alimentar é que são indicados exames clínicos, como o de sangue, que testa os níveis de imunoglobulina E (IgE), um anticorpo que tende a aparecer de forma elevada em casos de alergia, além do teste de contato, quando são aplicados alérgenos na pele de um paciente para checar se ele tem reação.
Dessa forma, é possível conectar a ingestão de um alimento aos sintomas de uma pessoa com suspeita de alergia. Sem a suspeita de alergia alimentar, não é necessário realizar nenhum exame, segundo as especialistas. “Comemos arroz e feijão a vida inteira. Se você fizer um teste desse e vier positivo, você não vai tirar o arroz e o feijão da sua vida, porque você está comendo e não tem sintomas. O que a gente precisa é sempre associar à história clínica”, afirma Renata.
Mas, se existe uma discordância entre história clínica e resultados de exames do paciente, a orientação é realizar o teste de provocação oral. Ele consiste na oferta do alimento em doses crescentes, sempre sob supervisão médica e em ambiente apropriado. Dessa forma, caso o paciente tenha algum tipo de reação, será prontamente atendido. Esse teste é considerado “padrão ouro” no diagnóstico da alergia alimentar e, apesar do receio de alguns pacientes, é seguro.
Para Jackeline, a pediatra da Asbai, em caso de resultado positivo, o exame confirma o diagnóstico e a necessidade dos cuidados. Agora, se der negativo, permite a introdução do alimento, melhorando muitas vezes a qualidade de vida do paciente e dos seus familiares.
Renata chama a atenção para o fato de que há muitos testes ineficazes para o diagnóstico de alergia alimentar, mas que ainda assim são solicitados por alguns profissionais e vendidos até mesmo em farmácias. Um exemplo é o teste de imunoglobulina G (IgG), que não oferece indicadores úteis para a identificar um quadro de alergia. Contudo, é um exame que pode ser realizado por conta própria, abrindo espaço para um autodiagnóstico equivocado – e uma eventual retirada de alimentos importantes do dia a dia, representando riscos à saúde.
Cuidados e tratamentos
Segundo Renata, a ciência avançou muito nos últimos anos em relação à garantia de segurança de pacientes com alergia alimentar. Contudo, não há cura para a condição. Por enquanto, o único tratamento 100% efetivo é a restrição total à proteína causadora da alergia. Isso significa retirar o alimento da dieta, mas também outros produtos que possam conter rastros da substância, como óleos que têm extrato de castanhas, por exemplo.
Em casos de ingestão acidental, há duas orientações. O uso de anti-histamínicos, popularmente conhecidos como antialérgicos, deve ser feito quando a reação é leve, com sintomas como vermelhidão na pele. Já em crises graves, com reações anafiláticas, o paciente deve recorrer à caneta de adrenalina, que é autoinjetável, e buscar atendimento médico rapidamente.
Para alguns pacientes, a imunoterapia também pode ser uma opção. Ela consiste em um processo supervisionado de contato com o alimento que causa a alergia e tem como objetivo aumentar a tolerância da pessoa à proteína. “Mais do que cura, isso seria um condicionamento do sistema imunológico para conseguir entrar em contato com uma quantidade um pouco maior do alimento sem reações”, explica Renata. Ainda de acordo com a alergista do Einstein, o tratamento tem bons resultados especialmente para casos de alergia ao leite e ao amendoim.
Dá para prevenir?
Ainda não há uma estratégia clara de prevenção às alergias alimentares, mas alguns cuidados podem contribuir nesse processo, como os listados abaixo.
- Aleitamento materno exclusivo até o bebê completar 6 meses;
- Alimentação saudável, com produtos in natura e a menor quantidade possível de ultraprocessados, que possuem aditivos como corantes e emulsificantes;
- Não adiar a introdução de alimentos sólidos na dieta do bebê;
- Manter o contato com a natureza para garantir uma microbiota intestinal saudável.
Além disso, Renata afirma que introduzir o ovo cozido em vez de mexido é uma estratégia que pode contribuir para evitar o desenvolvimento de alergia. “O ovo mexido tem a proteína mais íntegra, isso pode estar mais relacionado com o reconhecimento como uma proteína alergênica pelo sistema imunológico”, justifica.